Por Bispo José Ildo Swartele de Mello
Para que possamos ser capazes de entender o significado das
Duas Testemunhas mencionadas no capítulo onze de Apocalipse, é indispensável
que, primeiramente, levemos em consideração as peculiaridades de uma literatura
apocalíptica como esta, o propósito do livro e o contexto dos destinatários a
quem o livro foi direta e primariamente endereçado.
O Livro de Apocalipse está repleto de símbolos e figuras de
linguagem, de modo que a pergunta certa a se fazer diante do texto não é “O que
é isto?”, mas, sim, “O que significa isto?” Conhecemos muito bem o poder de uma
figura de linguagem. É comum que uma pessoa se esqueça de um sermão, mas a
ilustração e a imagem permanecem! Jesus, visando ser pedagógico, de uma maneira
nova, criativa, dinâmica, dramática e viva, nos apresenta um livro repleto de
figuras, fazendo revelações a respeito de si mesmo, da realidade espiritual, do
Reino de Deus e dos propósitos soberanos de Deus em relação à história humana.
Os que desconsideram a natureza figurativa do Apocalipse e
tentam interpretá-lo literalmente incorrerão em muitos erros, como, por
exemplo, o famoso erro teológico cometido por Russell, fundador das Testemunhas
de Jeová, que, em seu literalismo, chegou a conclusão de que apenas 144.000
pessoas iriam para o céu.
As revelações do Apocalipse não são novidades para aqueles
que conhecem bem as Escrituras Sagradas, pois são um retrato vivo do
cumprimento das expectativas escatológicas do Antigo e Novo
Testamentos. Portanto, o Apocalipse deve ser entendido à luz dos demais livros
da Bíblia. A Bíblia interpreta a própria Bíblia. Um texto lança luz sobre outro
texto. Textos mais obscuros devem ser interpretados à luz de textos mais
claros.
Falando agora especificamente sobre o trecho que trata das
Duas Testemunhas, ou seja, Apocalipse 11.1-14, levantamos a questão: "O
que significam as Duas Testemunhas?" Bem, algumas características
registradas no versículo 6, como "cerrar os céus para que não chova"
e o ato de "transformar a água em sangue" nos remetem a Elias e a
Moisés respectivamente. Sabemos que Moisés representa a Lei e que Elias
representa a linhagem dos Profetas. E, como Jesus costumava referir-se ao
Antigo Testamento chamado-o de “A Lei e os Profetas” (Mt 7:12; 22:40 e Lc
16:16), teríamos aí uma possível alusão ao testemunho das Escrituras Sagradas.
Além disto, Jesus também referiu-se as Escrituras Sagradas,
também denominada “a Lei e os Profetas”, como suas Testemunhas: “Examinais as
Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que
testificam de mim” (Jo 5:39).
É sugestivo também o fato da aparição de Moisés e Elias no
episódio da transfiguração de Jesus (Mc 9.4). Sendo assim temos muitos indícios
dentro da própria Bíblia e principalmente nas Palavras do próprio Jesus para
concluir que as Duas Testemunhas de Apocalipse 11 sejam uma referência às
Escrituras Sagradas do Antigo Testamento que testificam de Jesus e que se
cumprem em Cristo. Não cometeríamos nenhuma heresia em incluir as Escrituras do
Novo Testamento entre as Escrituras Sagradas, pois elas, de maneira ainda mais
clara, testificam de Jesus. O Apóstolo Paulo disse que a Igreja está edificada
sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, dois grupos de testemunhas de
Cristo, duas representações de lideranças espirituais do Novo e do Antigo
Testamentos que são o alicerce da igreja (Ef 2:20; 3:5) e, que neste espírito,
estariam em foco na visão apocalíptica das Duas Testemunhas bem como, um pouco
mais adiante, na menção feita em Apocalipse 18:20.
Tendo compreendido que as Duas Testemunhas do Livro de
Apocalipse são uma representação das Escrituras Sagradas, ou seja, a Lei e os
Profetas, simbolizados ali por Moisés e Elias, devemos lembrar também que Jesus
se dirigiu a toda a coletividade de seus discípulos incumbindo-os de serem suas
testemunhas: "E recebereis poder ao descer sobre vós o Espírito Santo e
ser-me-eis testemunhas!" (At. 1.8). Os cristãos são os pregadores da
Palavra e os porta-vozes das Escrituras. Não apenas as Escrituras, mas também
os discípulos testificam de Jesus Cristo! A Igreja é o Corpo vivo de Cristo
aqui na terra, devendo testemunhar dele como a expressão corpórea de Seu
Espírito Ressurrecto! A igreja recebeu o legado de Moisés, dos profetas e dos
apóstolos. O canto de vitória da Igreja contra a Besta é denominado de o
Cântico de Moisés, servo de Deus e do Cordeiro! Pois uma coisa tem a ver com a
outra. Há continuidade e pleno cumprimento! Ou seja, o Exôdo e a Páscoa do
Antigo Testamento se alinham perfeitamente a Páscoa Cristã, encontrando seu
pleno significado em Cristo e Sua Igreja, a vitória de Moisés contra Faraó é
uma bela ilustração da vitória de Cristo contra morte e da Igreja contra a
Besta, de modo que o cântico de vitória é o mesmo! Deus tem um só povo! De
ambos os povos, fez um! (Ef 2.14)
A Igreja tem como missão encarnar as Escrituras Sagradas e
dar continuidade ao testemunho de Jesus na plenitude do Espírito Santo. Os
discípulos de Cristo receberam a promessa do Pai que os capacita a serem
testemunhas de Jesus (At 1.8).
O fato de serem duas as testemunhas é algo que tem a ver
com a tradição da necessidade de haver pelo menos duas pessoas para que um
testemunho fosse aceito como válido (Dt 19.15; Nm 35.30; Jo 8.17; 2Co 13.1; 1Tm
5.19; Hb 10.28; Is 8.2). Por esta razão, foi que Cristo enviou seus discípulos
para darem testemunho dele de dois em dois (Mc 6.7; Lc 10.1)! Também foram duas
as testemunhas da ressurreição no Caminho de Emaús (Lc 24.13).
As Duas Testemunhas são descritas como "as duas
oliveiras" e "os dois candeeiros" (v. 4). Clara alusão a visão
de Zacarias 4, que fala do candelabro de ouro e das duas oliveiras cujo
significado é: "Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o
Senhor dos Exércitos" (4.6). As duas oliveiras eram "os dois
ungidos" Zorobabel e Josué, líderes do povo de Deus que lançariam os
fundamentos da casa de Deus e concluiriam a obra de construção pelo poder do
Espírito de Deus contra toda a oposição do inimigo a semelhança das Duas Testemunhas
do Apocalipse que pelo Espírito concluiriam seu ministério. O que nos faz
lembrar das palavras proféticas de Jesus a Pedro como representante da Igreja:
"sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela" (Mt 16.18).
Sabedores que somos que o Livro de Apocalipse foi escrito
para as Sete Igrejas que padeciam enorme tribulação sob a tirania de
imperadores déspotas, nada mais natural do que ver a igreja em foco da primeira
a última página do Apocalipse. A igreja é claramente descrita como candeeiro no
início do livro de Apocalipse: "E voltei-me para ver quem falava comigo.
E, ao voltar-me, vi sete candeeiros de ouro" (1.12)... "Eis o mistério
das sete estrelas, que viste na minha destra, e dos sete candeeiros de ouro: as
estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candeeiros são as sete
igrejas" (1.20). Jesus é descrito como a Videira Verdadeira e seus
seguidores como os ramos desta árvore (Jo 15.). E, em Romanos 11, Paulo fala de
duas oliveiras, a boa e a brava, dando a entender que os crentes gentios, como
ramos, foram cortados da oliveira brava para serem enxertados na boa oliveira,
compondo o povo de Deus, juntamente com os ramos naturais que representam o
remanescente fiel do povo judeu (Rm 11.4-24). Temos aí, então, uma que a
Oliveira é uma ilustração da Igreja de Cristo assim como também os são os
candeeiros!
O ministério das Duas Testemunhas dura três anos e meio, o
que coincide exatamente com tempo do ministério de Cristo aqui na Terra. Assim
como Cristo, as Duas Testemunhas têm o seu tempo determinado para o cumprimento
cabal de sua missão. Do modo como aconteceu com Cristo, as Duas Testemunhas
serão perseguidas e mortas, mas também de modo semelhante, elas ressuscitarão e subirão aos céus (v.11; Rm
8.11; 1 Ts 4.16,17; 1Co 15)!
O texto de Ap 11.7 diz: “Quando tiverem, então, concluído o
testemunho que devem dar”, ou seja, estas Duas Testemunhas cumprem cabalmente a
sua missão, concluindo o seu testemunho. Isto nos faz lembrar de que “Porque em
verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais
passará da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5:18), e, no mesmo livro, lemos:
“Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha
igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16:18). E Jesus
também profetizou sobre o cumprimento bem sucedido do testemunho do Evangelho
do Reino a todas as nações ao dizer: “E será pregado este evangelho do reino
por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então, virá o fim.” (Mt
24:14). O fim somente virá após o cumprimento da Missão da Igreja. Apocalipse
revela que a Igreja será fiel em seu testemunho de Cristo ao mundo inteiro,
pois fala de uma multidão inumerável de salvos procedentes de todas as etnias
da Terra (7.9)!
Assim como as Duas testemunhas são milagrosamente
protegidas até o cumprimento cabal de seu testemunho, assim também vemos, por
exemplo, o Apóstolo Paulo, que, por diversas vezes, no decorrer de seu
ministério, foi miraculosamente livre da morte, até que ele cumprisse o seu
ministério aqui na Terra. Observe que Paulo só é entregue à morte após o
cumprimento de sua carreira de testemunha de Cristo! De modo que ele pode
dizer: “Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé.” (2 Tm 4:7).
Assim também é com a Igreja que, durante toda a sua
história, sofreu muitas perseguições e não foram poucas as tentativas de
destruir com as Escrituras e de se acabar com o Cristianismo, que tem
sobrevivido a tudo e a todos e tem chegado aos nossos dias como a maior de
todas as religiões da face da terra.
Perceba na descrição de Apocalipse 11, que as Duas
Testemunhas estão em território hostil, mas mesmo assim elas conseguem
sobreviver o tempo suficiente para cumprirem a sua missão. Pois elas possuem
uma proteção especial. Elas não são um joguete nas mãos dos homens malignos.
Somente após terem cumprido sua missão é que elas são entregues à morte. Isto
nos remete não só ao testemunho da Igreja como um todo, como também ao
testemunho individual de cada crente.
A semelhança das Duas Testemunhas, os santos da Igreja são
descritos como sendo entregues à morte todo o dia, sendo reputados como ovelhas
para o matadouro (Rm 8.36). Assim como é dito que a Besta surge do abismo para
pelejar, vencer e matar as Duas Testemunhas (11.7), assim também vemos
acontecer com os santos da Igreja: "Vi emergir do mar uma besta"
(13.1)... "Foi lhe dado também que pelejasse contra os santos e os
vencesse" (13.7). Impressionante a semelhança entre os capítulos 11 e 13
de Apocalipse. Isto se dá por tratarem-se de textos pararelos que retratam a
mesma cena de ângulos diferentes e de modo criativo para fortalecer a visão. É
sabido que o Livro de Apocalipse não está em ordem cronológica do começo ao
fim, mas, sim, em blocos paralelos que retratam a história da Igreja do seu
começo a consumação dos séculos. O triunfo da Besta é aparente e temporário.
Dura pouco a sua festa! Breve Cristo vem para vencer! "então se cumprirá a
palavra que está escrito: Tragada foi a morte na vitória" (1Co 15.54).
Apesar de humildes, "vestidas de pano de saco"
(v. 3), por serem desprezadas e perseguidas neste mundo, vemos que as Duas
Testemunhas são mais do que vencedoras em Cristo Jesus (Ap 11.11-12 e Rm 8.37).
Elas estão identificadas com Cristo não apenas no seu sofrimento e morte, mas
também em sua ressurreição e glória (Rm 8.17)! A igreja primitiva que sofreu
tamanha oposição e perseguição, contemplando a morte dos apóstolos e de boa
parte dos seus irmãos em Cristo, podia, portanto, entender muito bem este texto,
como também se identificar com estas Duas Testemunhas, encontrando neste texto
um encorajamento muito grande da parte de Deus, que Reina Sobre Todos e que tem
o Mundo inteiro e a história de toda a humanidade em Suas Mãos. Não é à toa que
os testemunhos históricos afirmam que o Imperador Nero ficava perplexo com o
fato dos cristãos morrerem na arena com um sorriso nos lábios. A última palavra
não pertence a Besta. A morte não é o fim!
Assim como Moisés venceu a Faraó e como Elias venceu a
Acabe e Jezabel, assim também as Duas Testemunhas vencerão a Besta, pois as
portas do inferno jamais prevalecerão contra a Igreja de Cristo (Mt 16.18)!
"Pois, se Deus é por nós, quem será contra nós" (Rm 8.31)! As Duas
Testemunha possuem o poder do Espírito (At 1.8). Eles tem o poder da oração (Tg
5.17)! As Duas Testemunhas, como a Igreja, possuem as chaves dos céus! O que
ligam na terra é também ligado no céu (Mt 16.19)! Não sejamos infantis ao ponto
de interpretar literalmente o texto que diz que "sai fogo da sua boca para
devorar os inimigos". Isto não é desenho animado ou jogo de vídeo-game.
Isto é uma clara ilustração do poder de fogo da mensagem do Evangelho! A
Palavra de Deus é como uma espada afiada de dois gumes! Como o Apóstolo Paulo
bem descreveu o poder do testemunho da Igreja, dizendo: "porque para Deus
somos um aroma de Cristo, nos que se salvam e nos que se perdem. Para uns, na
verdade, cheiro de morte para morte; mas para outros cheiro de vida para
vida" (2Co 2.14-15).
Quantas vezes lemos textos como este e ficamos esperançosos
com a possibilidade da vinda literal de Moisés e Elias, ou de Enoque e Elias,
enquanto deveríamos estar atentando para o fato de que nós, porta vozes das
Escrituras Sagradas, devemos hoje cumprir a missão das testemunhas de Cristo?
Moisés, Elias, Enoque e os apóstolos de Jesus já fizeram a sua parte e
cumpriram a sua missão, já deram o seu testemunho e completaram as suas
carreiras. Agora, cabe a cada um de nós, darmos seqüência a esta missão,
assumindo o nosso papel de testemunhas de Jesus Cristo, de sal da terra e luz
do mundo! Disse Jesus: "e ser-me-eis testemunhas" (At 1.8), então,
"chamou a si os doze, e começou a enviá-los a dois e dois" (Mc
6.7). Esta é a hora e a vez da Igreja!
Bispo Ildo Mello
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